O jornal Folha de S.Paulo publicou um editorial denominado "Democracia e economia" em sua capa (edição de 04/06/2023), manifestando a visão do órgão sobre dois aspectos da sociedade brasileira: a política e a economia.
Em sua opinião, o retrocesso econômico do Governo Lula é um problema, mas a normalidade institucional readquirida, o respeito do Governo à crítica e o diálogo entre os Poderes seriam mais importantes. Nas palavras do jornal, "a soberania das urnas e a alternância de poder" compensariam a má política econômica, pois o Governo Lula seria substituído por outro se seguir nesse compasso.
Sem discordar que a democracia seja mais importante do que a economia, precisamos, contudo, explicitar o caráter ideológico e limitado da perspectiva econômica da Folha. O jornal assume ponto de vista entre o liberal e o neoliberal sem dizer expressamente.
Questiona aquilo o que chama de "hipertrofia estatal como meio de resolução de conflitos e carências", levando ao aumento do gasto público, descontrole da inflação e impedindo o crescimento em "bases duradouras". Os novos limites orçamentários seriam "débeis", haveria "arrocho desmesurado da carga tributária ou nova escalada do endividamento", sufocando investimento e emprego.
Lula é chamado de "estatizante, corporativista e clientelista" por questionar privatizações (Eletrobrás, marco legal do saneamento) e conceder subsídios a empresas "concentradoras de renda e geradoras de ineficiência".
Todas as críticas acima são apresentadas a partir de algumas concepções ocultas, não mencionadas, pois consideradas verdades universais irrefutáveis e, até, naturais. Infelizmente, são apenas opiniões desprovidas de fundamento científico e de base concreta nas experiências históricas.
A economia é o espaço social em que bens são produzidos e distribuídos e serviços são prestados. Nessa esfera, força de trabalho, tecnologia e matéria-prima se articulam para garantir que as necessidades vitais sejam satisfeitas.
Uma economia pode ser organizada de vários modos. Há séculos convencionou-se, de modo ideológico, que a melhor ou única forma de organização eficiente seria o "mercado". Assim, por meio de trocas, recurso à moeda, respeito à concorrência, à livre iniciativa e à lei da oferta e da procura, o mercado traria o pleno desenvolvimento da tecnologia e a distribuição de trabalho de forma justa e equitativa.
Nessa perspectiva, o Estado é visto como uma instância que depende do excedente econômico para tratar de questões políticas e jurídicas, retirando riqueza da economia. Por ser ineficiente, essa riqueza é perdida, pois seria melhor aplicada se continuasse na economia, propiciando sua expansão.
Ocorre, todavia, que o mercado não é nada disso. O caso brasileiro (mas também de países centrais) revela que o mercado é palco da atuação de poucos, normalmente com riquezas familiares, sem méritos humanos ou sociais, preocupados apenas com o aumento do próprio capital. Não há eficiência nas empresas, tampouco respeito à meritocracia, falácia disseminada entre os favorecidos pelo sistema.
O mercado gera enorme desperdício de matéria-prima, conduzindo o planeta à catástrofe ambiental. Além disso, os recursos tecnológicos são dirigidos para benefício de empresas privadas, causando estragos na humanidade. Um grande exemplo disso é a utilização de algoritmos por redes sociais, ou a corrida pela inteligência artificial generativa. Por fim, a força de trabalho é precarizada, humilhada e forçada a uma jornada desumana, num ciclo de corte de custos e redução de salários.
Deixar o mercado decidir o que fazer com a força de trabalho, com a matéria-prima e com a tecnologia é a pior decisão política que podemos tomar. A questão não é tamanho do PIB, mas sobrevivência, dignidade e felicidade da humanidade.
Assim, o jornal Folha de S.Paulo silencia sobre o essencial. Não que o Governo Lula vá acabar com o mercado. Não, longe disso. Vai estimular o crescimento do mercado com intervenção estatal. Infelizmente.
O jornal Folha de S.Paulo, contraditoriamente, ao silenciar sobre o essencial, ou seja, o caráter perverso do mercado e sua insustentabilidade nessa virada para o segundo quarto do século XXI, contribui para o fortalecimento daquilo o que quer combater: o discurso autoritário.
Uma das razões para o sucesso do discurso autoritário de direita é o fracasso da retórica de esquerda em demonstrar as mazelas causadas pelo mercado. Ao associar-se ao neoliberalismo progressista, a esquerda deixa de lutar contra o mercado e passa a querer domesticá-lo, como faz o Governo Lula.
Mas as massas que aderem à direita não engolem mais essa estratégia e anseiam por uma superação imediata das injustiças e das arbitrariedades. Como a esquerda não explicita as conexões com o mercado, o foco é desviado pelo discurso religioso conservador e perspectivas preconceituosas tradicionalistas.
Se a Folha continuar nessa toada, não verá a tão almejada alternância de governo daqui a duas eleições.
Comentários
Postar um comentário