Em um mundo ideal, existem duas esferas que não se tocam: a política e o direito. Cabe à política discutir os grandes temas da sociedade e estabelecer padrões, por meio de leis; cabe ao direito analisar comportamentos concretos à luz desses padrões estabelecidos pelas leis. O Congresso, órgão político, faz as leis e o Judiciário, órgão do direito, as interpreta e aplica.
Essas divisões começam a se complicar quando lembramos da Constituição Federal. Ela é parte da política ou do direito? As leis devem ser elaboradas, interpretadas e aplicadas conforme a Constituição. Trata-se, portanto, de ponto inegável de contato entre as esferas que não se deveriam tocar.
Aí podemos concluir que o Supremo Tribunal Federal (STF) é um órgão de natureza mista: sua função essencial consiste em interpretar a Constituição, dizendo para a sociedade qual seu "verdadeiro" significado. Consequentemente, ele é responsável por indicar se uma lei, feita pelo Congresso, é constitucional ou não. Caso não seja, seus efeitos são suspensos. Haveria função mais política do que essa, suspender os efeitos de uma lei?
O problema é que nas nossas caixinhas ideais colocamos o STF como órgão de cúpula do Poder Judiciário, sendo o mais poderoso do direito. Esperamos que os Ministros analisem os casos a partir de um raciocínio lógico, de natureza silogística, partindo das regras constitucionais (premissa maior) em face dos fatos ou das leis (premissa menor), concluindo com a única decisão possível. Se fosse assim, tudo continuaria redondo.
Porém, os casos de maior repercussão que chegam ao STF não são "fáceis", mas "difíceis" (hard cases). Um caso difícil é aquele para o qual não se encontra a solução em uma regra pronta. Às vezes, duas regras contraditórias tratam ao mesmo tempo do caso. Noutras vezes, não há regras, mas princípios contraditórios trazendo a possível solução. De qualquer modo, a decisão exigirá um esforço mais intenso de interpretação.
Nesse sentido, falamos de politização do direito quando o Judiciário recebe um caso "difícil" que deveria ter sido resolvido pelo Poder Legislativo ou pelo Poder Executivo. Por exemplo, no caso deste último: uma política pública não implementada por um governador, como a distribuição gratuita de determinado medicamento, que é apreciada e implementada diretamente por um juiz.
No caso da criminalização da homofobia, temos um exemplo de caso que deveria ter sido resolvido pelo Poder Legislativo. A Constituição Federal de 1988 foi muito clara em seu inciso XLI, do artigo 5°: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais".
Se considerarmos que discriminar uma pessoa em virtude de sua orientação sexual viola seus direitos e liberdades fundamentais, então essa conduta deve ser tipificada como proibida por uma lei, suscitando punição àquele que a pratique. Em outras palavras, a Constituição determina ao Congresso que crie uma lei criminalizando a homofobia.
Todavia, dado o perfil conservador dos parlamentares, muitas vezes imbuídos de intolerância sexual, essa lei jamais foi criada. Isso caracteriza a omissão legislativa, abrindo espaço para a atuação política do STF, mediante provocação por meio de dois instrumentos: o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
No dia 20/2/19, o Ministro Celso de Mello finalizou a leitura de seu voto, na qualidade de relator, apreciando a questão acima. Sem grandes dificuldades, reconheceu a omissão de mais de trinta anos do Congresso brasileiro ao não criar lei criminalizando a homofobia. Para saná-la, contudo, precisou de recursos sofisticados de teoria geral do direito.
Precisamos dizer que a falta de uma lei tratando de um tema é chamada de "lacuna". Isso não deveria ocorrer. O direito deveria ser um conjunto completo, tratando de todos possíveis conflitos sociais. Mas não é.
Hoje, mesmo quando existe a lei, tamanha é a complexidade social que ninguém consegue identificar o caso a que ela se refere. Do mesmo modo, os casos se tornam tão complexos que parecem sempre fugir da incidência das leis congeladas no tempo. Tércio Sampaio Ferraz Júnior (em Nota a um leitor intrigado, texto que fala dos trinta anos de seu livro Introdução ao Estudo do Direito) aborda isso:
...entre a universalidade do direito tradicionalmente concebido e as liberdades singulares, a relação permanece abstrata e, no espaço dessa abstração, desencadeiam-se formas muito reais de violência (protestos com agressões, confusão entre espaço público e espaço destinado ao público, agressões gratuitas ao diferente, entre tantas outras) que acabam por consumar a cisão entre o direito como instituição legislada/jurisdicizada e a prática social que irrompe pelo curto circuito da comunicação virtual, capaz de, em instantes, movimentar, numa “ordem” “desordenada”, multidões e indivíduos.De qualquer modo, no caso da homofobia, o Ministro apontou claramente a ausência da lei, caracterizando a lacuna. Quando uma lacuna é constatada, existem mecanismos para sua eliminação. O mandado de injunção é um deles: o STF determina que o Poder Legislativo faça a lei faltante. Mas a ordem para por aí. O Judiciário não pode, efetivamente, forçar o Legislativo a legislar. Nem pode ele mesmo, por não ter essa competência, criar sozinho essa lei.
Enquanto isso, a lei não criada faz falta. Cabe ao Judiciário (ao STF, no caso) apresentar uma solução que elimine a lacuna até a criação definitiva da lei. Aqui reside o grande problema do caso: estamos falando em transformar uma conduta em crime. A constituição é bastante clara nesse pormenor: não há crime ou pena sem LEI anteriormente criada (art. 5°, inc. XXXIX).
A Constituição não autoriza a criação de crime por qualquer outro meio que não seja a lei feita pelo Congresso. Como vimos, ela também determina que seja criada lei punindo (estabelecendo penas) qualquer forma de discriminação, como a homofobia. E essa lei ainda não existe.
Eis o impasse enfrentado pelo Ministro Celso de Mello: como criminalizar a homofobia sem criar, no seio do STF, uma nova lei? Como evitar que pessoas sejam prejudicadas em seus direitos e liberdades fundamentais em virtude de sua orientação sexual até que o Congresso resolva criar essa lei?
A teoria geral do direito ensina que a lacuna pode ser preenchida de outras formas que não sejam a edição da lei faltante: por analogia, costumes ou princípios. Porém, nenhum desses recursos, à luz do citado inciso XXXIX do artigo 5° da CF, permite que se preencha uma lacuna criando um novo crime.
A solução encontrada pelo magistrado contraria a lógica do argumento construído em seu voto. O Ministro optou por reinterpretar o artigo de uma lei já existente, ressignificando o crime nela previsto para nele enquadrar a homofobia. Ora, mas com isso nega a existência da própria lacuna! Se sua interpretação atualizadora revela que a homofobia já estava prevista nessa lei, então não havia a necessidade de se falar anteriormente em lacuna.
A manobra hermenêutica deu-se com a Lei 7.716/89:
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.Vejamos, nas palavras do próprio magistrado:
...reconhecimento imediato, por esta Corte, de que a homofobia e a transfobia, quaisquer que sejam as formas pelas quais se manifestem, enquadram-se, mediante interpretação conforme à Constituição, na noção conceitual de racismo prevista na Lei n° 7.716/89, em ordem a que se tenham como tipificados, na condição de delitos previstos nesse diploma legislativo, comportamentos discriminatórios e atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais do grupo vulnerável LGBT (p. 65).Seguindo seu raciocínio, a palavra racismo deve ser interpretada conforme a Constituição, atualizando seu significado. Como não há qualquer base científica para a defesa da ideia de que existam raças biologicamente diferentes entre os seres humanos, qualquer noção de racismo será uma construção cultural. Dizer que raça signifique uma coisa ou outra é uma questão arbitrária (p. 97).
Sendo assim, o Ministro Celso de Mello considera "atos homofóbicos e transfóbicos como formas contemporâneas do racismo", enquadráveis na tipificação penal da citada lei n° 7.716/89 (p.90). Sua justificativa para essa interpretação liga-se à eficácia:
Daí a correta afirmação de que no processo de indagação constitucional, impõe-se ao intérprete, mediante adequada pré-compreensão dos valores que informam e estruturam o próprio texto da Constituição, conferir-lhes sentido que permita deles extrair a sua máxima eficácia, em ordem a dar-lhes significação compatível com os altos objetivos indicados na Carta Política (p. 91).
O Poder Judiciário, em sua atividade hermenêutica, há de tornar efetiva a reação do Estado na prevenção e repressão aos atos de preconceito ou de discriminação praticados contra pessoas integrantes de grupos sociais vulneráveis (p.101)A fim de evitar o argumento de que estaria indevidamente a produzir uma nova lei, destaca que o "procedimento hermenêutico" não se confunde com "o processo de elaboração legislativa" (p. 92). Também não se trata de "aplicação analógica (e gravosa) das normas penais", proibidas pelo direito penal (p. 94), ou de "formulação de tipos criminais, nem de cominação de sanções penais" (p. 93).
Então explicita-se a grande contradição de seu voto:
O que estou a propor, como anteriormente acentuei, limita-se à mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente (a Lei n° 7.716/89, no caso), na medida em que atos de homofobia e de transfobia constituem concretas manifestações de racismo, compreendido este em sua dimensão social: o denominado racismo social (p. 95).Ora, mais uma vez precisamos ressaltar a incoerência: se o magistrado tão somente está a realizar a subsunção de condutas homofóbicas aos crimes de racismo, então não poderia admitir a existência de uma lacuna.
Por outro lado, seu recurso à interpretação "conforme a Constituição" para atualizar a noção de racismo é genérica. Abre-se espaço para a entrada de uma perspectiva ética que amplia o significado da palavra, mas cuja presença nas normas constitucionais não se demonstra pontualmente.
Mais uma vez devemos citar Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em seu mencionado texto:
...pode-se dizer que os procedimentos jurídicos de sistematização e interpretação, nas sociedades contemporâneas, não visam mais inteiramente àquela congruência rígida de normas constitucionais, mas passam a buscar uma legitimação social, propiciada pela real efetivação dos direitos em vista de uma consecução prospectiva. (...)
...os direitos constitucionalmente estabelecidos não são regras (conteúdos normativamente declarados), mas princípios em eventual conflito e, por isso, objeto de ponderação, não de subsunção. Do que resulta uma concepção de direito como uma prática social confiada aos aplicadores, uma prática de interpretação e argumentação de que se devem dar conta todos os operadores do direito e que põe em questão a distinção entre ser e dever ser, o direito como fato e como norma.O Ministro Celso de Mello recorre à Constituição em busca de princípios genéricos que justifiquem seu raciocínio interpretativo de uma norma legal. Quando ele fala em subsunção, não se trata de um silogismo constitucional, mas de justificar o alargamento do tipo penal com base naqueles princípios.
Em resumo, podemos ver que o STF foi chamado a cumprir seu papel político, tentando suprir a omissão legislativa do Congresso relativamente à criminalização da homofobia. O relator do caso, Ministro Celso de Mello, proferiu um voto contraditório do ponto de vista lógico, afirmando existir uma lacuna mas, em seguida, defendendo que o crime de homofobia está contido no crime de racismo. Para essa defesa, baseado em princípios constitucionais, reformulou o entendimento de "racismo", buscando dar eficácia à proteção dos grupos LGBT.
Se olharmos para o caso com a perspectiva de um jurista tradicional, veremos um magistrado imbuído de ativismo judicial a invadir o espaço da política para encontrar um modo de dar eficácia a direitos fundamentais ainda que sacrificando a coerência lógica e a segurança jurídica. Talvez, contudo, essa perspectiva já não reflita a realidade do direito brasileiro.
Resgatemos, para finalizar, o artigo 8° do CPC de 2015:
Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.A legalidade, nesse artigo, foi deslocada a apenas mais um princípio, em meio a outros, e depois do atendimento aos "fins sociais" e ao "bem comum", a ser respeitado no momento de aplicação do direito.
Grande análise mestre Adriano Ferreira, questiono se o super ministério dado ao ex juiz e hoje ministro Sérgio Moro com as atuais medidas, propondo, inclusive alterações do código penal, não acabam por bagunçar de vez a autonomia dada a cada um dos três poderes. Além disso a insegurança gerada com as vastas interpretações dadas atualmente pelo STF também é gigantesca, até onde o STF pode deliberar sobre a interpretação de determinados princípios constitucionais?
ResponderExcluirPubliquei texto falando um pouco sobre o Moro (https://www.politica.legal/2019/03/o-ministro-holofote-sergio-moro-e-suas.html), embora sem entrar diretamente em sua questão.
ExcluirA questão dos limites (ou da falta deles) ao poder de interpretar do STF é bastante interessante e complexa. Por estar no topo da estrutura, em tese seu poder é ilimitado. Vimos recentemente, contudo, que o STF precisou recuar quando suas interpretações foram solenemente ignoradas por outros poderes, como o Legislativo. Assim, parece que o melhor meio de se encontrar um ponto de equilíbrio, sem alterar nosso sistema, seja utilizar dos mecanismos de freios e contrapesos dos poderes.